Priscila Santos
5 min readApr 4, 2021

Dor!

Dor era tudo o que eu sentia, dor por todo lado, ainda não havia aberto os olhos, não havia coragem em mim. O cheiro era de fumaça, minha pele estava colando, como naqueles dias quentes de verão em que o suor gruda e tudo o que você quer é um banho.

Sob as minhas costas uma superfície dura, meus braços estavam posicionados ao lado do meu corpo, meus dedos tatearam um pouco, explorando a superfície já que meus olhos se recusavam a abrir.

Areia? Acho que é areia, ou será terra pura? Deixei que meus dedos chegassem cada vez mais longe.

E então veio um grito, alto, estrangulado, um grito de mulher… Era eu quem gritava? E então outro grito, e mais um, e passei a ouvir o pior som da minha vida, uma multidão de gritos, lamuriosos, desesperados, gritos como eu ouvi dizer que havia no inferno. Estou no inferno?

Abra os olhos! Abra os olhos, Priscila! Eu dizia pra mim mesma, a minha própria voz dentro da minha cabeça, mas meus olhos se recusaram mais uma vez!

Estou cega? Minhas mãos vem desesperadamente ao meu rosto, meus olhos estão apenas fechados.

Os gritos ficam cada vez mais altos, novos vão se juntando ao coro, como mortos vivos acordando

ABRA OS OLHOS, PORRA!

Olhos abertos, a dor era insuportável, mas o alívio de ainda enxergar me inundou por um milésimo de segundo.

Eu estava no chão, no chão da cidade, sei disso porque minha primeira visão foi um arranha céu do meu lado direito em chamas, o céu estava cinza, cinza de fumaça, o sol tentava penetrar a fumaça sem sucesso, me fazendo lembrar da frase “nós riscamos o céu,”

Do meu lado esquerdo um outro prédio, também alto, mas não tão grande, um pouco mais largo, me lembrou um cubo mágico, a comparação me fez sorrir, poder brincar agora parecia muito bom…

NÃO FECHE OS OLHOS DE NOVO, FIQUE VIVA.

Olhos abertos! Foco na dor! Porque estou com tanta dor?

Consigo erguer a cabeça, meu corpo ainda está inteiro, em toda a extensão.

Mas há algo errado no meu abdômen, existe uma massa por cima da minha barriga, sei que é ali que dói, mas porque dói tanto?

Meus dedos tocam a massa que se contrai um pouco, a dor é lacerante.

Tento me sentar, mas mudo de ideia. Minha cabeça se ergue um pouco mais, e então vejo, a massa, sou eu, meus órgãos estão expostos, fora do meu corpo, as minhas vísceras estão ali, acima do meu corpo, abaixo de toda fumaça, de toda fuligem, abaixo do fogo.

Adrenalina!

Adrenalina toma conta de mim, eu não vou morrer, eu não posso morrer.

MEXA-SE!

Um grito muito perto interrompe meus pensamentos, um homem, na faixa dos 50, se arrastava na minha direção, pedia por ajuda, a pele estava estranhamente limpa, mas ele se arrastava, pedia por ajuda.

Reclamou da cabeça, reclamou da dor insuportável de cabeça, me ressenti dele, como ele ousava reclamar da dor de cabeça? Ele não estava vendo minhas vísceras expostas?

A raiva me dominou, deitada como eu estava gritei com aquele homem, pedi pra se afastar, ele apenas parou, se deitou, e… dormiu?…

Os gritos não cessaram, havia muita gente gritando, mas agora estavam abafados, meus ouvidos estavam perdendo a função?

A minha esquerda vinha uma mulher, uma mulher alta, bem vestida. Gritei por ajuda, esta correu na minha direção, quando se abaixou pra me olhar mais de perto o rosto estava manchado, manchado de… parecia maquiagem borrada…

-Por favor, me ajuda — eu disse. Minha voz era apenas um sussurro agora.

A mulher franziu o cenho como se não tivesse entendido, então me pediu ajuda de volta, balançando as mãos.

A mão direita era perfeita, unhas bem cortadas e bem feitas, esmalte vermelho.

A mão esquerda porém, havia sido arrancado um dedo, o dedo anelar, ainda minava um pouco de sangue, sangue… Então era sangue o que havia no rosto dela.

Me ajude, ela repetiu.

A raiva voltou a tomar conta de mim, era apenas um dedo, UM DEDO.

Segurei aquela mão e apertei o que devia ser um dedo, com o máximo de força que eu pude.

VOCÊ ACHA QUE ISSO É DOR?!

A mulher bem vestida tentou se livrar de mim, mas minhas mãos continuavam a apertar, foi preciso um soco, um soco na minha cara para que eu a soltasse, minha próxima imagem foi de ela correr, correr pra longe.

O remorso tomou conta de mim no mesmo instante, eu podia ter ajudado, talvez ela me ajudasse de volta depois.

A dor era continua, eu precisava buscar ajuda, mas não conseguia me mexer sem que meus órgãos mexessem junto pra direção errada.

Parei pra respirar, e então eu a vi, minha irmã, minha irmã caçula.

Estava em pé ao meu lado, vestia uma camisola bonita, branca, era seda, mas não era transparente.

O cabelo loiro estava impecável apesar do caos a sua volta, havia alguma coisa em seus braços, uma boneca?

Quando ela chegou perto, o rosto estava borrado, borrado com tons de preto e vermelho

Ela se ajoelhou ao meu lado, estava chorando, mas os lábios tinham um sorriso.

- Eu sei que está doendo — ela disse, precisamos tratar isso, precisamos cuidar de você. Mas nesse momento, eu preciso de você. Você vai acordar em breve, mas preciso que prometa que vai cuidar de si mesma depois, então prometa.

Lágrimas saiam do meu rosto, sangue da minha boca.

Ela limpou minhas lágrimas, as lágrimas que refletiam o próprio rosto dela.

- Prometa!

- Eu prometo!

O sorriso dela se alargou.

- Obrigada! Agora abra os olhos.

Meus olhos se abriram, eu estava em um quarto de hospital, bem decorado, sentada em uma poltrona relativamente confortável. Uma enfermeira bateu na porta avisando que era hora do banho da minha irmã, olhei o relógio, eram três da manhã.

Levantei no ímpeto, ajudei a levá-la até o banheiro, tiramos sua camisola, uma camisola de algodão de fácil acesso pra dar de mamar.

O corpo dela ainda tinha as deformidades da gestação, então me lembrei das pessoas dizendo pra ela que gravidez é difícil, mas que ter seu filho no colo fazia tudo valer a pena.

E lá estava ela, com as cicatrizes de uma gestação difícil, sem um filho nos braços.

As lágrimas não vieram, eu precisava ser forte e o meu corpo sabia disso. As minhas vísceras e os meus órgãos estavam no lugar certo.

Ajudei no banho e a coloquei na cama, ela voltou a dormir com a ajuda dos sedativos. O dia amanheceu, era 11 de Março, precisávamos sair cedo do hospital, era dia de enterrar uma criança, a filha dessa irmã. Enterrar um ser humano que viveu por duas horas.

A dor voltou, olhei pra baixo, não havia nada exposto.

Seja forte por ela, pensei… suas vísceras estão à mostra, você sente assim, mas ande assim um tempo, alguém que você ama precisa de você.

Priscila Santos

Uma viciada em sorrisos, metida a escritora, cantora, fotografa, marketeira… Xereta, impaciente e ciumenta. Preta orgulhosa. Crespa Feliz!